Amor líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos.
O ato de apaixonar-se e desapaixonar-se é o objeto de estudo de Zygmunt Baumam ao longo do primeiro capítulo. Pessoas apaixonam-se e desapaixonam-se hoje em dia com notável facilidade. Devido o “até que a morte os separe” ter caído em desuso, estando completamente fora de moda, a palavra amor virou um substantivo bastante flexionado, cabendo perfeitamente em uma série de eventos. Amor serve tanto para descrever uma noite de prazeres banais quanto uma vida inteira casado ao lado de um parceiro ou parceira. Essa elasticidade dada a palavra ‘amor’ acaba gerando uma falsa sensação de que o ato de amar é uma habilidade que pode ser desenvolvida tanto nas experiências passadas como na prática do exercício. Isso se constitui em uma falácia, pois cada pessoa é um ser singular e mais importante, um indivíduo diferente em cada momento distinto da vida. É também diferente cada situação vivida. Antigas experiências servem apenas como lembrança, não são ingredientes da formação de um conhecimento empírico ou um manual de como se proceder. Não se pode querer viver o mesmo tempo que já se foi, o momento já vivido. Esses conhecimentos não indicam a forma correta de agir nem com a mesma pessoa em diferentes contextos (devido à inconstância e volatilidade do ser humano), muito menos com outros indivíduos.
Segundo Ivan Klimka, o Amor e a Morte disputam o mesmo ponto de chegada e a eles não cabem repetições ou instruções vindas de terceiros. A fatalidade ou o acaso permeiam essas relações. Até hoje não se conseguiu obter uma metodologia específica para o amor. O grande problema que advém disso é que não se pode conceituar ou criar paradigmas para estudos sobre esses dois temas. Estudar o amor ou a morte esperando respostas conclusivas é como planejar os rumos de uma sociedade desgovernada que, caminhando desordenadamente, segue as vontades diversas dos inúmeros constituintes da mesma. É como planejar o acontecimento de milagres ou até mesmo dominar o destino, o oculto e o desconhecido. O desencontro de uma lógica plausível torna o preenchimento da lacuna da compreensão quase que humanamente impossível.
É da natureza do amor ser refém do destino, embora consigamos inferir algumas constantes em relação a ele. Amar é um dos verbos que implica o maior contingente de palavras explicativas cabíveis. É usado quando se tem como objetivo gerar, criar, modificar (tanto de forma positiva quanto de forma negativa, embora visando sempre um benefício posterior.). O amor está contido no fator e no resultado de uma equação matemática, entretanto, seu maior interesse é no provento dessa questão. A comunhão e ao troca são importantes para o amor por serem o meio pelo qual se pode chegar ao produto final. “Em cada amor, há pelo menos dois seres, cada qual a grande incógnita da equação, é isso que faz o amor parecer um capricho do destino.”. Em última instância, amar significa deixar-se à disposição das vontades alheias, sempre desejando um resultado positivo (Mais uma vez concluí-se que o resultado é sempre uma surpresa.). Para se construir um relacionamento é necessário dois seres, para se acabar com ele é preciso apenas a vontade de um.
Baumam diferencia, na busca por explicar os relacionamentos humanos, o desejo do amor. A dualidade humana e as intervenções do meio (exterior ao indivíduo.) são algumas das causas que nos leva a diferenciar os mesmos. Com a perda de alguns valores e a progressiva e infeliz individualização das pessoas, acabamos tornando mais difícil alcançar o nível de amante (no sentido de ser apto a amar.) tendo em vista que o amor nos faz abrir mão de algumas de nossas convicções, chegamos a de conflito com a nossa situação atual. “E assim é numa cultura consumista, que favorece o produto pronto, a satisfação instantânea” e a não-construção diária e penosa das estruturas necessárias para se erguer uma relação sólida de amor. O ritual necessário para a manutenção de um relacionamento sadio e estável desprende energia, tempo e investimentos (em diferentes aspectos.) que nem sempre nos retornam em lucros.
O esforço para manter uma relação que não nos agrade em sua totalidade é dispensável quando podemos saciar nossas vontades e sanar nossas necessidades de maneiras mais fáceis e com a tão almejada, satisfação garantida.
O desejo é uma compulsão, um impulso. A sua completa realização encontra-se no suicídio. “O desejo é auto-destrutivo, ele é contaminado, desde o seu nascimento pela vontade de morrer.”. É a ‘desconstrução’ do outro que nutre e potencializa o Alter ego de quem deseja e a realização do desejo alimenta o indivíduo ao mesmo tempo em que definha. O amor por outro lado é a vontade de somar, de trazer para si e não de se desfazer. É ingerir, absorver e assimilar. O amor é sustentável e o desejo suga de uma maneira irresponsável (afinal não cabe a ele nenhuma responsabilidade) recursos que são quase sempre não renováveis.
Fato que não deve ser desconsiderado é que o amor, embora um sentimento puro em essência e forrado sempre das melhores intenções, caminha ao lado do poder. O amor é uma via de mão de única em que se tem de andar rápido para acompanhar o fluxo enquanto o desejo não parece ser nada mais do que um retorno, uma saída rápida. Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. “Ele aprisiona para proteger.”.
Um dos problemas do relacionamento do poder com o amor é que ocasionalmente (estando o amor nas mãos do destino) pode acontecer uma variável, e o principal ingrediente pode virar o temor. Como disse Maquiavel no livro “O príncipe”, por vezes torna-se mais cômodo para um lado ser temido do que, de fato, amado. Gera-se assim uma subordinação à vontade de apenas um indivíduo. É assim que o amor se transmuta para desejo, desqualificando-se enquanto sentimento e fortificando-se em eficácia.
Uma outra vertente é a maturação dos desejos. O desejo depois de ‘assassinado’ pode renascer em amor. “Essa evolução demanda tempo e energia, e nos encontramos em uma sociedade que vive correndo”. Os impulsos porém, ainda mantém vivas as esperanças de que não haverão conseqüências a longo prazo, “sempre deixando a porta escancarada a novas possibilidades românticas”, reforça Baumam. O impulso mantém o caráter descartável do desejo, embora a contração em amor pode ser completa e definitiva.
O amor nos dias de hoje acaba se passando por uma mazela que embora não possa se prevenida, pode ser curada (ou pelo menos pode haver uma manutenção para uma vida quase normal.) A maleabilidade e as novas alternativas para superar um relacionamento que não obteve sucesso são cada vez mais procuradas. Muitos são os motivos citados por Baumam para justificar o fim de um amor. Fato perceptível, é que esse sentimento não move mais o mundo e não mata mais tanto quanto matava os homens dos séculos passados. A superficialidade ou o progressivo desenvolvimento do indivíduo, como a independência e a capacidade (mais do que conhecida) de se adaptar, fez com que os seres humanos fossem capazes de superar e ‘apagar’ o amor que não deu certo. A tendência é nos tornarmos cada vez mais parecidos com as máquinas. Seres frios e mecânicos, que como no modelo Fordista teve seu comportamento condicionado.
Outro aspecto do amor, observado por outro prisma deve ser acompanhado. Durante todos os parágrafos acima, discutimos o amor na sua forma mais convencional. Os relacionamentos que conhecemos hoje são frutos de uma acomodação cultural limitante. Ao homo sapiens o sexo, puro e sem restrições concebidas pela negação do instinto animal, assegurou-lhe a perpetuação através do tempo. A limitação e gradativamente a proibição do incesto é considerada “marco zero da cultura.” Ambos habitam a mesma categoria de estudo: O campo das vontades humanas que permeiam todas as relações inter-pessoais.
Com o passar do tempo, o sexo adquiriu uma conotação pejorativa, de desigualdade, violência e abuso moral/físico. Resolveu-se que racionalizando o ato sexual, estabelecendo regras e método torna essa prática, tão pitoresca, menos parecida à dos demais animais (não dotados da complexa capacidade de discernimento.) e mais especificamente humana. Interromper, por conseqüência, o curso natural da vida imprime a singular característica inerente apenas ao ser humano, a de premeditar as conseqüências de seus instintos.
A nossa inversão de valores faz com que chamemos o ato sexual de ‘fazer amor’, mesmo quando o que acontece é só a satisfação de uma necessidade, nada tão sublime. O grande mérito do sexo sempre foi o fator “criação”. Fruto que se encaixa perfeitamente no resultado da equação matemática citada no começo da discussão. Baumam proclama que atualmente compete à medicina a responsabilidade (e o dom) da reprodução. É a nossa sociedade que fascinada pela possibilidade de “escolher” um filho num catálogo de produtos acabou ramificando e consequentemente destituindo e abandonando a prática natural do “homo sexualis.”
Em decorrência das relações capitalistas mercadológicas instituídas por essa conduta de colocar em cifras todos os tipos de relacionamentos intra pessoais e de hipervalorizar o dinheiro e não mais o humano fez com que algumas conseqüências fossem observadas. A superficialidade das trocas, a independência e a individualização fizeram com que muitas e mais várias outras conseqüências também fossem analizadas. A superficialização das trocas, a independência e a individualização em escalas inacreditáveis, a progressiva falência de instituições como o casamento e a família, são alguns dos fatores que levaram as virtudes e os valores (conseqüentemente, o amor.) a um quase que completo colapso. Um exemplo desses fenômenos é a constante avaliação e indagação sobre os benefícios e os malefícios de se ter filhos. Mais do que uma escolha de cunho sentimental ou mesmo de obrigação com o cumprimento do mais importante dos deveres, a opção de ter ou não filhos é muito mais baseada na posse de bens materiais do que, de fato, em qualquer outro motivo acima citado. A decisão hoje em dia demanda estudos e cálculos sobre o quanto se pode investir na criação de uma criança, ainda mais agora que definitivamente, um filho passou a ser uma livre escolha, não mais um acidente. Por outro lado, Baumam afirma que são incontáveis os prazeres e alegrias da maternidade/paternidade, e que não existe ainda nenhum produto que substitua essa realização. O mercado nem sempre visa suprir na mesma escala, mas sim reposicionar um novo produto, compatível ou parecido que substitua algumas necessidades (em curto prazo, eficazes.). Vale ressaltar que nem as mais íntimas, e nem em sua totalidade, as vontades devem ser aniquiladas. Essa é a forma de manutenção da “sociedade do capital”. Como resumo proposto pelo autor, concluímos que a aposentadoria do homo sexualis ( a iminente separação do sexo e da reprodução.) é fruto de uma escolha do consumo como estratégia escolhida e da influência do meio e da liquidez da vida moderna.
Pode até parecer que a simples “mudança” da forma como se confronta o sexo é a resposta cabível para tornar os seres humanos completamente realizados e em comunhão perfeita com o amor e com o próximo, mas infelizmente não acontece uma fusão total absoluta, e apenas mais um novo engano, uma ilusão. “Agora espera-se que o sexo seja auto-sustentável (...) Não é de se admirar que também tenha crescido enormemente sua capacidade de gerar frustrações e de exacerbar a própria sensação de estrangulamento que se esperava que curasse”. Na contínua busca pela completa satisfação e auto aceitação dos seus comportamentos atuais, o homo sexualis antigo, deu espaço a dois solitários, auto centrados e em até certo ponto racionais protagonistas. Cada um no seu enredo específico. O homo oeconomicus, distinto, a quem os teóricos unicamente atribuem o mérito (ou o infortúnio) de manter a economia em movimento e o homo consumens que é a única forma que os praticantes conhecem e preferem se identificar, e que a principal função (ou martírio) é a de auto centrado comprador que vê na busca pela melhor barganha uma cura para a solidão, e infelizmente ele não conhece nenhuma outra terapia. Coabitando e convivendo em um mundo cheio de indivíduos, que com ele comungam todas essas virtudes, e nada além. A cada nova falha, ele não se permite buscar mais o acerto, apenas desenvolve razões que justificam os já tão conhecidos erros de percurso.
Para concluir o sufocante mergulho na mais conturbada relação do homem, devemos considerar que esse indivíduo e suas inúmeras denominações são apenas vítimas de uma sociedade maligna e corrosiva que os parasitou, desovando nesse hospedeiro passivo todas as suas idéias, valores e discursos, levando o mesmo a acreditar que contra sua força destrutiva não há resistência. O amor foi, em sua maioria, destruído e remodelado nesse Frankstein que alimentamos hoje ao proferir um “Eu te amo” da forma vazia, irresponsável e impiedosa.
O poder do consumo e a fascinação hipnótica que ele exerce nos indivíduos, a aceitação ou a tentativa infeliz de ver o sexo como um episódio único e quase irrelevante que dificilmente conseguiria amadurecer em uma resistente história com todos os seus elementos. Os avanços da comunicação (internet, celular) que constroem casulos de individualização enquanto confundem e dão a errônea sensação de socialização, ainda que de uma forma mais tímida e absurdamente insólita. A prática de tornar descartável e facilmente substituível todos os relacionamentos, a gradativa perda da qualidade (do sexo propriamente dito.) a oferta massiva e ostensiva de formas alternativas de satisfação e a falta de credo e/ou esforço que possibilitaria, talvez, uma mudança ou pelo menos um estagna desse trajeto rumo ao caos são algumas das cenas que Baumam invade no segundo capítulo, e termina por figurar,nos convidando a fazer o mesmo durante essa exaustiva e amaldiçoada jornada que pode ser sintetizada e finalizada com suas próprias palavras: “ O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos se seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cuja presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. Nesse processo os valores intrínsecos dos outros como seres humanos singulares estão quase desaparecendo de vista. A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor.”
2 comentários:
Muito boa tua análise sobre o livro
Adoro Bauman, o melhor sociólogo Pós-moderno que conheço, ele coloca exatamente a realidade, não só dos sentimentos mas também dos fatos ocorridos em nosso atual mundo veloz.
Teu blog está lindo, tu escreve muito bem.
Um bjo, tenhas um bom dia.
Discordo da parte que rola uma comparação do Amor com a Morte.
O Amor pode ser opcional na vida de um humano, mas a Morte não é.
Tá, tem outras coisas que eu não concordo também, como na parte que fala dos movimentos "frios e mecânicos" do modelo Fordista. Hoje sinto que estamos é cada vez mais imersos no modelo de produção Japonês, detalhista, rumo ao "Amor ISO 9002". Onde rotinas precisam se encaixar assim como análises curriculares, circulo de amizades e tudo mais.
Se eu gosto de beber meu "rabo de galo" e você gosta do seu café gelado, não podemos nos Amar, pois nossas agendas não batem.
Mas aquele "frio e mecânico" modelo Fordista podia não ter ISO 9002 e nem controle de qualidade. Mas sempre funcionou, com ou sem marretadas para desentortar as peças.
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